Mário de Sá-Carneiro

poeta português (1890-1916)

Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de Maio de 1890Paris, 26 de Abril de 1916), foi um poeta, contista e ficcionista português.

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Extractos de Confissão de Lúcio editar

  • "Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos... nada podendo já esperar e coisa alguma desejando - eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo.
Não tenho família; não preciso que me reabilitem. Mesmo, quem esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade simples é esta. (...)
Ricardo de Loureiro, o poeta das Brasas... (...)
Fui pouco a pouco distinguindo os objetos... E, de súbito, sem saber como, num rodopio nevoento, encontrei-me sentado em um sofá, conversando com o poeta e a sua companheira...
Sim. Ainda hoje me é impossível dizer se, quando entrei no salão, já lá estava alguém, ou se foi só após instantes que os dois apareceram.
Da mesma forma, nunca pude lembrar-me das primeiras palavras que troquei com Marta - era este o nome da esposa de Ricardo.
Enfim, eu entrara naquela sala tal como se, ao transpor o seu limiar, tivesse regressado a um mundo de sonhos.
Eis pelo que as minhas reminiscências de toda essa noite são as mais tênues.
Entretanto, durante ela, creio que nada de singular aconteceu. Jantou-se; conversou-se largamente, por certo...
à meia-noite despedi-me.
Mal cheguei ao meu quarto, deitei-me, adormeci... E foi só então que me tornaram os sentidos. Efetivamente, ao adormecer, tive a sensação estonteante de acordar de um longo desmaio, regressando agora à vida...
Não posso descrever melhor esta incoerência, mas foi assim.
(E, entre parênteses, convém-me acentuar que meço muito bem a estranheza de quanto deixo escrito. Logo no princípio referi que a minha coragem seria a de dizer toda a verdade, ainda quando ela não fosse verossímil.) (...)
Raros dias se passavam em que não estivesse com Ricardo e Marta. Quase todas as noites nos reuníamos em sua casa, um pequeno grupo de artistas: eu, Luís de Monforte, o dramaturgo da Glória; Aniceto Sarzedas, o verrinoso crítico; dois poetas de vinte anos cujos nomes olvidei e - sobretudo - o conde Sérgio Warginsky, adido da legação da Rússia, que nós conhecêramos vagamente em Paris e que eu me admirava de encontrar agora assíduo frequentador da casa do poeta. (...) (...) (...)
Ricardo empurrou a porta brutalmente...
Em pé, ao fundo da casa, diante de uma janela, Marta folheava um livro...
A desventurada mal teve tempo para se voltar... Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à queima-roupa...
Marta tombou inanimada no solo... Eu não arredara pé do limiar...
E então foi o mistério... o fantástico mistério da minha vida...
ó assombro! ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta - não! -, era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revólver ainda fumegante!...
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma chama...
Aterrado, soltei um grande grito - um grito estridente, despedaçador - e, possesso de medo, de olhos fora das órbitas e cabelos erguidos, precipitei-me numa carreira louca... por entre corredores e salões... por escadarias..."
  • "(...)que o seu gênio - talvez por demasiado luminoso - se consumiria a si próprio, incapaz de se condensar numa obra - disperso, quebrado, ardido. E assim aconteceu, com efeito. Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar."
  • " Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores... eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos - é impossível achar outros..."
  • " De forma que gastar tempo é hoje o único fim da minha existência deserta. Se viajo, se escrevo - se vivo, numa palvra, creia-me: é só para consumir instantes. Mas dentro em pouco - já o pressinto - isto mesmo me saciará. E que fazer então? Não sei... não sei... Ah! que amargura infinita..."
  • " É curioso: sou um isolado que conhece meio mundo, um desclassificado que não tem uma dívida, uma nódoa - que todos consideram, e que entretanto em parte alguma é adimitido...(...) Nos próprios meios onde me tenho embrenhado, não sei por que senti me sempre um estranho..."
  • "A minha alma não se angustia apenas, a minha alma sangra.As dores morais transformam-se-me em verdadeiras dores físicas, em dores horríveis, que eu sinto materialmente - não no meu corpo, mas no meu espírito."
  • " Sim, a minha pobre alma anda morta de sono, e não a deixam dormir - tem frio, e não sei aquecer! Endureceu-me toda!secou, ancilou-se-me; de forma que movê-la - isto é: pensar - me faz hoje sofrer terríveis dores. E quanto mais a alma me endurece, mais eu tenho ânsia de pensar! Um turbilhão de idéias - loucas idéias! - me silva a desconjuntá-la, a arrepanhá-la, a rasgá-la, num martírio alucinate! Até que um dia - óh!é fatal - ela se me partirá voará em estilhaços... A minha pobre alma! A minha pobre alma!..."
  • " Sou todo incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto como nunca ninguém a admirou!"
  • "Somos todos álcoo, todos álcool! - álcool que nos esvai em lume que nos arde!"
  • " (...) só depois de satisfazer os meus desejos, posso realmente sentir aquilo que os provocou. A verdade, por consequência, é que as minhas próprias ternuras, nunca as senti, apenas as adivinhei."
  • " (...) eu, por mais que me esforce, nunca poderei retribuir nenhum afeto: afetos não se materializam dentro de mim! é como se me faltasse um sentido - se fosse cego, se fosse surdo. Para mim, cerrou-se um mundo de alma. Há qualquer coisa que eu vejo, não posso abranger; qualquer coisa que eu palpo, e não posso sentir... Sou um desgraçado... um grande desgraçado, acredite!"
  • " Eu era alguém cujos pés, sobre uma estrada lisa, cheia de sol e árvores, se cavasse de súbito um abismo de fogo."
  • " Permaneci, mas já não me sou."
  • " Quando eu morrer batam em latas, rompam aos saltos e aos pinotes, façam estalar no ar chicotes, chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um Burro, Ajaezado á andaluza... A um amorto nada se recusa, Eu quero por força ir burro!

- (Paris, - 1916;), (sá-caneiro, mário de. In: Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 28, ed. São Paulo; cultrix; 1968...Páginas-A410... 413_;)

  • "Sou todo incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto como nunca ninguém a admirou!"
-A Confissão de Lúcio - página 29, Volume 42 de Biblioteca Essencial da Literatura Portuguesa, Mário de Sá Carneiro, Atlântico Press, 2013, ISBN 9898559705, 9789898559708, 110 páginas

Poesia editar

  • "Momentos de alma que desbaratei... Templos aonde nunca pus um altar... Rios que perdi sem os levar ao mar... Ânsias que foram mas que não fixei... Se me vagueio, encontro só indícios... ogivas para o sol — vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sobre os precipícios..."
- Poesia - página 30, Volume 22 de Trechos escolhidos, Mário de Sá-Carneiro, Cleonice Berardinelli, Editora AGIR, 1965
  • "Morte, que mistérios encerras?...Ninguém o sabe...Todos o podem saber...Basta ir ao teu encontro, corajosa, resolutamente, que nenhum mistério existirá já!""
- Mário de Sá Carneiro - página 137, Volume 3 de Antología moderna, Mário de Sá-Carneiro, João Alves das Neves, Editôra Iris, 1962, 302 páginas