Humano, demasiado humano

Humano, demasiado humano , um livro para espíritos livres ('Menschliches, Allzumenschliches'), foi a primeira obra de Friedrich Nietzsche após o rompimento com o romantismo de Richard Wagner e o pessimismo de Arthur Schopenhauer .


  • "Não é uma questão frívola perguntar se Platão, caso tivesse permanecido indiferente ao fascínio socrático, não teria encontrado um tipo mais elevado de humanidade filosófica, tipo que para nós se perdeu para sempre?"
  • "As mulheres podem se tornar facilmente amigas de um homem; mas, para manter essa amizade, torna-se indispensável o concurso de uma pequena antipatia física".
  • "Qual é amarra mais firme? Quais as cordas que são quase impossíveis de romper? Entre os homens de uma qualidade elevada e seleta serão os deveres: esse respeito, como convém à juventude, essa timidez e delicadeza diante de tudo o que é venerado há muito e digno, o reconhecimento pelo solo em que cresceu, pela mão que guiou, pelo santuário em que aprendeu a orar".
  • "O trágico na vida de grandes homens está, freqüentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus semalhantes, mas na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra".
  • "O hipócrita que representa sempre o mesmo papel deixa enfim de ser hipócrita".
  • "Toda moral admite ações intencionalmente prejudiciais em caso de legitima defesa".
  • "Não se pode inverter todos os valores? E o bem é talvez o mal? E Deus nada mais é que uma invenção e uma astúcia do diabo? Talvez em última análise, tudo esteja errado? E se nós nos enganamos, não somos por isso mesmo também enganadores? Não temos de ser igualmente enganadores? - Esses pensamentos que o guiam e que o extraviam, sempre mais avante, sempre mais longe. A solidão o cerca e o envolve, sempre mais ameaçadora, mais estranguladora, mais pungente. Essa temível deusa e mater saeva cupidinum (mãe cruel das paixões) – mas quem sabe hoje o que é a solidão?..."
  • "Tudo evolui; não há realidades eternas: tal como não há verdades absolutas".
  • "A gente sóbria e industriosa, em que a religião está bordada como um laurel da humanidade superior: essa gente faz muito bem em continuar religiosa, isso a embeleza. Todos os homens que não entendem o ofício das armas – incluindo entre as armas a boca e a caneta – tornam-se servis: para esses. A religião cristã é muito útil, pois o servilismo toma então o aspecto de uma virtude cristã e fica estonteantemente embelezado. Pessoas, para quem sua vida cotidiana parece demasiado vazia e monótona, tornam-se facilmente religiosas: isto é compreensível e perdoável".
  • "Se o cristianismo tivesse razão com suas teses do Deus vingador, da propensão universal ao pecado, da predestinação pela graça e do perigo de uma condenação eterna, seria um sinal de fraqueza de espírito e falta de caráter não se fazer padre, apóstolo ou missionário e não trabalhar com o temor e tremor exclusivamente para sua própria salvação; seria absurdo perder assim de vista a vantagem eterna em troca da comodidade temporária. Supondo que tenha fé, o cristão de todos os dias é uma figura lamentável, um homem que realmente não sabe contar até três e que, de resto, justamente por causa de sua incapacidade mental de calcular, não mereceria ser castigado tão duramente como lhe promete o cristianismo".
  • "Enquanto um indivíduo reconhecer os pontos fortes e fracos de sua teoria, de sua arte, de sua religião, sua força ainda é escassa. O discípulo e o apóstolo que não tem olhos para a fraqueza da teoria, da religião e assim por diante, ofuscado pelo prestígio de seu mestre e por sua devoção para com ele, tem, por isso, habitualmente mais poder que o mestre. Sem os discípulos cegos, a influência de um homem e de sua obra nunca conseguiu ainda se difundir. Muitas vezes, ajudar no triunfo de uma idéia significa apenas associá-la tão fraternalmente com a estupidez, que o peso da última se torna também obrigatória a vitória da primeira".
  • "Não há amor e bondade suficientes no mundo, para que ainda se possa oferecê-los a seres imaginários".
  • "Todo hábito tece em torno de nós uma teia sempre mais sólida de fios de aranha; e logo percebemos que os fios se tornaram lagos e que nós mesmos ocupamos o centro, como uma aranha que se prendeu a si e que deve viver de seu próprio sangue. É por isso que o espírito livre odeia todos os hábitos e regras, todo o duradouro, o definitivo, é por isso que recomeça sempre, com dor, a romper em torno dele a teia: embora deva sofrer em conseqüência de muitos ferimentos, pequenos e grandes – pois é dele próprio, de seu corpo, de sua alma, que deve arrancar esses fios. Deve aprender a amar onde odiava e vice-versa. Não deve até mesmo ser impossível para ele semear os dentes do dragão no campo onde recentemente fazia correr os chifres da abundância. Disso se pode concluir se ele é feito para a felicidade do casamento".
  • "Viver perto demais de um homem é a mesma coisa que retomássemos sempre uma bela gravura com os dedos nus: um belo dia teremos nas mãos um péssimo papel sujo e nada mais. A alma de um homem se desgasta também por um contato contínuo; pelo menos é o que nos acaba por parecer – nunca mais haveremos de rever sua figura e suas belezas originais. Sempre se perde no relacionamento demasiadamente íntimo com mulheres e amigos: e nisso se perde às vezes a pérola da própria vida".
  • "O espírito livre respirará sempre. Desde que finalmente se resolver a sacudir essa solicitude e essa vigilância maternas com as quais as mulheres o cercam. O que não pode causar uma corrente de um ar um pouco rude, que era afastada tão ansiosamente dele, o que significa uma vantagem real, uma perda, um acidente, uma doença, uma dívida, uma sedução a mais ou a menos em sua vida, comparados com a falta de liberdade do berço de ouro, dessa exibição pavão de cauda aberta e do sentimento penoso de dever ainda ser grato para ser vigiado e mimado como uma criança de peito? É por isso que o leite que a solicitude maternal das mulheres de seu meio lhe dão pode tão facilmente se transformar em fel".
  • "Os espíritos livres viverão com mulheres? Em geral acredito que, como os pássaros verídicos da antiguidade, sendo aqueles que pensam e dizer a verdade do presente, preferirão voar sozinhos".
  • "Sócrates encontrou uma mulher de que realmente precisava – mas ele próprio não a teria procurado nunca, se a tivesse conhecido bastante; o heroísmo desse espírito livre não teria ido de qualquer forma tão longe. O fato é que Xantipa o impeliu sempre mais em sua missão pessoal, tornando-lhe a casa e o lar inabitáveis e inospitaleiros: ela ensinou a viver nas ruas e em toda parte onde se pudesse conversar e ficar na ociosidade e fez dele o maior dialético das ruas de Atenas; ele teve finalmente de se comparar com um cabresto que um deus havia colocado no belo cavalo Antenas para não deixá-lo jamais em paz".
  • "Opinião publica – preguiças privadas".
  • " Uma convicção é a crença de estar, num ponto qualquer do conhecimento de posse da verdade absoluta.
Essa crença supõe, portanto, que há verdades absolutas; ao mesmo tempo que foram encontrados os métodos perfeitos para chegar a isso; finalmente, que todo o homem que tem convicções aplica esses métodos perfeitos.
Essas três condições mostram logo a seguir que o homem das convicções não é um homem do pensamento científico; ele está diante de nós na idade da inocência teórica, é uma criança, qualquer que seja o seu porte.
Mas séculos inteiros viveram nessas idéias pueris que jorraram as mais poderosas fontes de energia da humanidade. Esses homens inumeráveis que se sacrificavam por suas convicções acreditavam fazê-lo pela verdade absoluta.
(...)
Não foi a luta de opiniões que tornou a história tão violenta, mas a luta da fé nas opiniões, isto é, nas convicções.
Se no entanto, todos aqueles que faziam de sua convicção uma idéia tão grande, que lhe ofereceriam sacrifícios de toda a espécie e não poupavam a metade de sua força para procurar por qual direito se ligavam a essa convicção antes que a essa outra, por cujo caminho tinham chegado que aspecto pacífico teria tomado a história da humanidade!
Como teria sido muito maior o número de conhecimentos! Todas essas cenas cruéis que a perseguição dos herdeiros em todos os tipos oferece nos teriam sido poupadas por duas razões: em primeiro lugar, porque os inquisidores teriam dirigido antes de tudo sua inquisição para eles mesmos e com ela teriam terminado com a pretensão de defender a verdade absoluta; em segundo lugar, porque os próprios partidários de princípios tão mal fundados como são os princípios de todos os sectários e todos os “crentes no direito”, teriam cessado de compartilhá-los depois de tê-los estudado".
  • "As convicções são inimigas da verdade mais perigosas que a mentira".
  • "Vivemos num tempo em que civilização periga morrer por meio da civilização".
  • "Ninguém mais morre hoje de verdades mortais, há antídotos em demasia".
  • "A exigência de ser amado é a maior das pretensões".
  • "Um mantém sua opinião, porque imagina que chegou a ela por si mesmo, o outro porque a aprendeu com dificuldade e está orgulhoso por ter conseguido compreendê-la: ambos, em decorrência, por vaidade".
  • "Educação artística do público. Quando o mesmo motivo não é tratado de cem maneiras distintas por mestres diversos, o público não aprende a ultrapassar o interesse pelo conteúdo; mas por fim ele mesmo capta e desfruta de nuances, e as novas e delicadas inveções no tratamento desse motivo, ou seja, quando há muito conhece o motivo através de numerosas elaborações e não mais experimenta o fascínio da novidade, da curiosidade".
  • "Enobrecimento pela degeneração.[...] um povo que em algum ponto se torna quebrando e enfraquecido, mas que no todo é ainda forte e saúdadvel, pode receber a infecção de novo, e incorpora-lá como benefício. No caso do individúo, a tarefa educação é a seguinte: torná-lo tão firme e seguro que , como um todo, ele já não possa ser desviado de sua rota. Mas então o educador deve causar-lhe ferimentos, ou utilizar os que lhe produz o destino, e quando a dor e a necessidade tiverem assim aparecido, então algo novo e nobre poderá ser inoculado nos pontos feridos. Toda sua natureza acolherá em si mesma e depois, nos seus frutos fará ver o enobrecimento [...]".
  • "Educação milagrosa. O interesse pela educação só ganhará força a partir do momento em que se abandone a crença num Deus e em sua providência exatamente como a arte mêdica só pôde florescer quando acabou a crença em curas milagrosas. Mas até agora todos crêem ainda na educação milagrosa: viram que os homens mais fecundos, mais poderosos se originaram em meio a grande desordem, objetivos confusos, condições desfavoráveis; como poderia isto suceder normalmente?".
  • "A civilização grega do tempo clássico é uma civilização de homens. Quanto às mulheres, Pérides, em seu dis­curso fúnebre, diz tudo com as palavras: O melhor delas é quando entre homens se fala delas o menos possível. - A relação erótica dos homens com os jovens era, em um grau inacessível ao nosso entendimento, o pres­ suposto necessário, único, de toda educação viril (mais ou menos como, por muito tempo, toda educação superior das mulheres, entre nós, só era trazida através do noivado e casamento); todo idealismo da força da na­tureza grega investia-se nessa relação, e provavelmente os jovens nunca mais foram tratados tão amorosamente, tão inteiramente em vista de seu melhor (virtus), como no sexto e no quinto século - portanto, conforme a bela sentença de Hölderlin: 'Pois amando o mortal dá o melhor'".
Die griechische Cultur der classischen Zeit ist eine Cultur der Männer. Was die Frauen anlangt, so sagt Perikles in der Grabrede Alles mit den Worten: sie seien am besten, wenn unter Männern so wenig als möglich von ihnen gesprochen werde. – Die erotische Beziehung der Männer zu den Jünglingen war in einem, unserem Verständniss unzugänglichen Grade die nothwendige, einzige Voraussetzung aller männlichen Erziehung (ungefähr wie lange Zeit alle höhere Erziehung der Frauen bei uns erst durch die Liebschaft und Ehe herbeigeführt wurde), aller Idealismus der Kraft der griechischen Natur warf sich auf jenes Verhältniss, und wahrscheinlich sind junge Leute niemals wieder so aufmerksam, so liebevoll, so durchaus in Hinsicht auf ihr Bestes (virtus) behandelt worden, wie im sechsten und fünften Jahrhundert, – also gemäss dem schönen Spruche Hölderlin's "denn liebend giebt der Sterbliche vom Besten".
Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano, 1878


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