Carlos Vaz: diferenças entre revisões

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'''Reencontros'''
:Insisto em contar ao Marcos histórias que o desgaste da memória ainda não apagou. Falo-lhe dos primeiros tempos de uma viagem em busca de uma Escola mais fraterna. Descrevo episódios luminosos, poupando o Marcos a relatos de ignomínias, pois o meu neto há-de chegar a descobrir por si próprio e a seu tempo, que os maravilhosos seres humanos também são capazes da perfídia e da maldade. Explico-lhe como, perante as contrariedades e insucessos, nos agarrávamos aos livros como a bóias salvadoras. Nos momentos mais críticos, quando a vontade de desistir era imperativa, evitávamos o naufrágio, relendo-os, para percebermos onde nos teríamos enganado na interpretação dos mapas que nos levariam à praia prometida.
:Só não sabíamos que toda a viagem tem regresso. Que o barco que parte não é o mesmo que regressa, mas regressa. Que a vida é toda ela reencontro. Que somos um pouco de cada ser que encontramos na viagem. Que há seres viajando ao nosso lado, noutras viagens. E que até os mortos queridos vão a par, quando ousamos contrariar ventos predominantes. Se alguém não acredita, que medite no que vou contar.
:Foi numa São Paulo frenética, num fim de tarde, enquanto viajava de carro entre dois aeroportos. O motorista era conversador e de fala fluente. E a conversa (ou melhor, o monólogo) arrancou ao mesmo tempo que a viatura.
Pensava eu ter de aguentar a costumeira conversa sobre o tempo que fazia… Mas enganei-me, pois o motorista falou-me da sua infância no Nordeste. Contou-me histórias de fome e abandono. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado, bem precocemente, da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro. Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta história igual a tantas outras histórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros… Mas o melhor estava para vir. A certa altura do monólogo, parámos nuns semáforos. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala:
- “Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?”
Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta.
– “Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou”.
:Assenti com um aceno a que não deu atenção. E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica:
- “O senhor sabe o que faz a minha mulher?... É professora! Quando nos casámos, ela já tinha estudos, mas quis tirar um curso. Só tinha um problema: não gostava de ler. E eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso”.
Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato:
- “A minha mulher trazia livros para eu ler. À noite, eu lia. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fazia as provas e ficava aprovada. E, assim, fez o curso de professora”.
:Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. E ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Dewey, Piaget... E rematou a conversa, por estarmos a chegar ao nosso destino:
- “Para o senhor deve ser difícil compreender o que lhe vou dizer, porque são assuntos da Pedagogia, da Educação… compreende?”
Não retorqui, e ele concluiu, dizendo:
- “Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem a certas crianças. E até me deu vontade de chorar”.
:Talvez nunca aquele motorista venha a saber o quanto me comoveu a sua história. Talvez nunca possa manifestar-lhe a minha gratidão, porque não o pude fazer, naquele momento. O nó que eu senti na garganta ameaçava desatar-se…
:No decurso das nossas vidas, há dias assim, prodigiosos. Acabo de receber uma chamada telefónica. Seria idêntica a muitas outras, um convite para fazer uma palestra sobre a Ponte. Mas a minha memória acendeu-se, ao escutar o nome da pessoa que me falava do outro lado da linha. Ousei perguntar se seria filha ou familiar da professora Isabel Pires. A minha interlocutora respondeu que era ela mesma, a Isabel em pessoa. Na década de 70, sem que a Isabel o soubesse, foi uma sua obra que iluminou os caminhos da aprendizagem da matemática de muitas gerações de alunos da Ponte.
:Encontrei a Konstance Kamii, professora do Alabama, num aeroporto estrangeiro, quando regressava de um congresso, onde (coincidência?) fui falar da Ponte. E agradeci-lhe um contributo que ela ignorava ter dado. Foram os seus estudos sobre autonomia, a partir dos contributos de Piaget, que sustentaram o quanto basta de teoria, nos primeiros tempos do nosso projecto.
:Volvidos trinta anos, quando a barca de sonhos chega ao seu primeiro porto e se apronta para nova viagem, começo a coabitar com um Mistério a que não dou nome. Há algo cuja existência a minha razão sempre rejeitou. Os projectos (conhecidos ou ainda anónimos), que visam resgatar a vocação da Escola, não seguem sempre rumos paralelos. Súbitos reencontros nos mostram que esses projectos também se alimentam de ocultas solidariedades. Será verdade que andam anjos pela Terra?
 
<i>José Pacheco; Jornal a Página da Educação" , ano 14, nº 151, Dezembro 2005, p. 5.</i>
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